terça-feira, 17 de setembro de 2013

O estertor.

Foi um verdadeiro drama.

Dagoberto havia sido encontrado morto de manhã, pela moça do café, debruçado sobre o teclado de seu computador.

O médico legista afirmou que pelos detalhes, ele havia sofrido um infarto, e que o fato deveria ter ocorrido há quase dois dias.

O trauma foi geral. Ninguém podia entender como uma coisa assim havia acontecido. Dagoberto estava morto á quase dois dias e ninguém havia percebido, mesmo com várias pessoas trabalhando naquela sala. Como isso poderia ter ocorrido?

Um sentimento de culpa assolou a todos.

Mas a verdade é que, já há muito tempo, por se recusar a participar das artimanhas engendradas pelos colegas da sala, Dagoberto havia sido esquecido pelo grupo. Mas mesmo assim, seguia fazendo o seu trabalho normalmente, sem dar muita importância à situação.

Aquela morte era uma situação inusitada, onde todos da sala, de uma forma ou de outra, ficaram traumatizados com o acontecido. Como “bons colegas”, foram todos ao velório, para a última despedida e para aliviar um pouco o peso que havia se instalado em suas consciências.

Discretamente, ao redor do caixão, começaram a tecer uma serie de elogios ao morto. Mas à proporção que o velório ia enchendo e pessoas importantes da empresa se faziam presentes, os comentários foram se acentuando, e enaltecendo cada vez mais as virtudes do ex-colega.

A um determinado momento, alguns mais observadores começaram a perceber que o corpo do Dagoberto parecia estar um pouco mais contraído do que quando eles lá chegaram. Em tom de espanto, comentários a esse respeito foram sussurrados discretamente. Parecia que alguma coisa muito estranha estava acontecendo. A cada minuto que passava, notava-se que o corpo do finado se contrair cada vez mais. O espanto e a curiosidade tomaram conta dos presentes.

Observando tudo, do alto da sala, a Morte, com suas grandes asas negras e sua foice reluzente, esperava calmamente o término do velório para levar definitivamente a alma de Dagoberto. Ao perceber a profunda agonia que aquele espírito estava passando, ela diz para o falecido de forma incisiva: - Dagoberto, não adianta mais. Entenda que você morreu e que não pode mais voltar. Este é um caminho sem volta.

Dagoberto olha para ela e diz repleto de indignação:

- Senhora, eu sei bem disso, mas é que mesmo morto eu não agüento a presença destes hipócritas fazendo discurso sobre minhas virtudes, inclusive sobre algumas que nem as tenho.

Quando estava vivo nem um bom dia me era dado, agora ficam aí me bajulando. Fazem agora o que sempre fizeram, tentam se passar por pessoas de alto valor humanitário, mas na verdade são um bando de abutres. Se não fosse a Zefa, acho que ainda estaria ainda lá, debruçado sobre a mesa e apodrecendo cada vez mais.

Só era lembrado quando a coisa apertava e lá viam eles, amáveis e respeitosos para que pudesse resolver a questão. Depois só havia desprezo e esquecimento.

Entre eles a relação era sempre de puro elogio, onde a “irmandade” se tratava sempre pelo diminutivo. - Saiba senhora, eu nunca me dobrei a todo aquele embuste. Agora eles têm o desplante de virem aqui para me elogiar. Mais um ato de fingimento, de simulação e de falsidade.

Após ouvir tudo atentamente, e sendo a morte apenas um anjo, que não é nem bom nem mau, e que apenas executa o seu trabalho, achou toda aquela situação merecia uma repreenda. Sendo assim concedeu a Dagoberto a possibilidade de se expressar pela ultima vez para aquele grupo.

Repentinamente uma respiração rouca e crepitante vindo do defunto rompe o silencio momentâneo que fazia na capela.

Era o morto que parecia estar voltando à vida. Espanto e desespero tomam conta dos presentes.

Em seguida escuta-se uma voz rouca e profunda. Era o Dagoberto que se pronunciava pela ultima vez:

- Bando de calhordas; bando de hipócritas! Deixe-me em paz!

A debandada foi geral.

Claudio Sarnelli 20/05/2013

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