terça-feira, 27 de maio de 2014

Cem anos de ilusão

Eu a este ponto torno-me uma nau a navegar. Sem porto, trago em mim, sem poder me livrar, todas as agruras destes infinito mar.

Olho, vejo e sinto, sem poder falar, a presença de todos os monstros que pairam no ar.

Coube a mim um “gran finale”. Mas simplesmente não posso. Aceitariam um apenas um “finale”? Não quixotesco por si só, mas real; tão real que outros já sucumbiram por tal.

Coube a mim, capitão desta nau, apenas a solidão, o grande troféu a alcançar. Nada mais!

A luta sem luta, a luta com luta. A luta com dor. O momento se aproxima e a esperança se esvai, enquanto o tempo escorre pelas velas de nossas naus.

Uma coisa posso dizer: Nasci de coturno, e tenho um coração litificado por cem anos de ilusão. Poderia dizer o porque, e muito mais. Mas para que o faria, se nada mudou neste último século.

As pessoas nasceram, a grama cresceu, e elas se foram. O homem á lua chegou e o mundo encolheu. Hoje ele cabe na palma de nossas mãos. Mas nada mudou!

O homem cotidiano, xucro por natureza, não é capaz de enxergar o seu próprio rastro, de sentir o seu próprio cheiro. Assim como um guarda-chuva, nada muda!

A luta sem luta, a luta com luta, a mudança só pela dor.

31/08/2010

sexta-feira, 16 de maio de 2014

SAUDADES DO AMIGO

Em homenagem a uma época.

Autor: Luis Henrique Dias Tavares

Se o meu amigo estivesse vivo teria completado 90 anos. Infelizmente ele partiu em junho de 1991. Já então doente, mas lúcido e com a voz articulada ainda encontrou alegria para confiar-me que as mulheres da casa sempre o chamavam para que lhes dissesse a palavra final da canjica que borbulhava no grande tacho de cobre.

Foi esse orgulho de entendido no ponto certo de todos os doces e comidas o que ele manteve às vésperas de ir para o hospital e morrer. Vejo-o com os seus pequenos olhos vivos sentar-se na mesa para apreciar a moqueca de robalo com a bela cor do melhor azeite de dendê, o perfume especial dos pratos elaborados com amor e duzentos anos de cultura.

Com os olhos no meu amigo, minha mãe esperava. Ele saboreava lentamente o peixe embebido no azeite de dendê e no leite de coco. Servindo-se com o maior gosto, ele fazia o seu julgamento inapelável:

– Está boa, mas o coco era sapudo.

Sapudo! Como sabia? Como recolhera tal saber e arte? Poucos teriam como ele a certeza mais segura e apropriada para conhecer e comprar o melhor peixe fresco nas canoas que encostavam na escada do porto. Jamais conheci outro que reunisse vitória, festa e completa alegria no ato aparentemente simples de fazer feira. Ia do freguês da banana-da-terra ao da farinha de mandioca – única pura e deliciosa Copioba, fina e torrada ao ponto de parecer quente – do freguês de laranja-lima ao de abóbora e jiló, alguns desses fregueses tabaréus seus compadres. Mesmo que não fossem, conhecia-os a todos e pra cada qual tinha elogios e comentários que sempre valiam risos.

– Essa não, seu Luizinho!

Meu amigo chamou-se Luís Dias Tavares. Foi homem pobre nascido em família extensa e antiga. Pela linha paterna, era Dias Tavares por causa do avô João, imigrante português oriundo de Tomar, mas também considerava o pedaço Coelho de Sousa da avó Sinhá. Pelo lado matemo era Caldas Brito, o Caldas Brito do avô Tibério, homem dotado de famosa teimosia.

Por causa dos compromissos de família, julgou-se com o dever de cuidar de instituições assistenciais que vinham do século XIX – a Santa Casa, com o seu Hospital Gonçalves Martins, e o Asilo dos Meninos Desvalidos – ambas pobres e carentes, ainda mais pisadas e repisadas na descida econômica da cidade de Nazaré das Farinhas, que nunca foi rica, mas possuiu certo período de importância na sua condição de porto fluvial, escoadouro das riquezas do sudoeste.

Eu o vi bonito e feliz na reunião de médicos de Santa Casa, em 1933. Era jovem e recente Provedor (eleito em 1932), posição em que amargou solitária responsabilidade ao administrar instituições cujos magros recursos se apoiavam em aluguéis e enganosas apólices estaduais. Por aí se escoaram os melhores anos de sua vida.

Em algumas das lembranças mais recuadas de minha infância – bela e gostosa infância na Rocinha de Sinhá, no Onha e na Rua do Seco – vejo meu amigo preparando uma cantimplora de sorvete; ou o assisto elaborando balões para a noite de São João, que ele amava. Em distante madrugada de inverno eu o vi montar um cavalo tresmalhado e acertar sobre o corpo longa capa colonial. Ia cobrar uma dívida na Cidade de São Felipe.

Quarenta e cinco anos de comerciante! Nos últimos anos de vida sofreu permanente dor física e sentiu as duras limitações financeiras de pensionista do INPS. Não obstante pobre, encantou netos e netas, grande avô na capacidade de escutar e conceder.

É este meu amigo o velho que desce do ônibus e vem com passos arrastados e curtos até o banco de cimento em que o espero sentado. Tem sorriso de pai.

– Então, filho, como está?

É pergunta que não escutei. Mesmo que a escutasse, meu pai, não tenho palavras, gestos ou seja lá o que for. É só isso de me encontrar aqui neste fim de tarde. E são estas saudades que são muitas saudades.

TAVARES. Luis Henrique Dias. Sete cães derrubados. 59 Crônicas e o conto O misterioso caso da vida e da morte do comendador Borel (Salvador: Edufba; Fundação Casa de Jorge Amado, 200. p. 119-120)

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Caixinhas

Com o passar do tempo, descobri que desenvolvi um certo hábito.

Costumo arrumar as minhas coisas dentro de pequenas caixinhas.

Nelas coloco fatos, imagens, emoções,saudades

e todo este tipo de coisas.

As empilho umas sobre as outras,

e as esqueço em algum lugar escuro do sótão.

Outro dia, por um acaso, esbarrei-me com uma delas.

Era uma das antigas; uma das mais antigas.

Quando a abri, encontrei um sorriso largo, aberto e contagiante.

Olhei, com muito carinho pensei:

- Que bom eu ter guardados isso!