segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A máquina.

E finalmente ela chegou. A impressora que todos estavam esperando acabava de chegar. Essa ansiedade toda era justificada, pois não era uma máquina qualquer, era algo realmente especial, uma daquelas “High Tech” de ultima geração, cheia de funções para todos os lados e luzes que tudo indicava. A novidade foi recebida euforicamente por todos, enquanto, em pleno corredor, a turma da informática já executava os primeiros movimentos para colocá-la em funcionamento.

Após os últimos ajustes, os responsáveis pela instalação elogiavam a qualidade excepcional daquele aparato maravilhoso e de tudo que ele podia fazer. Era muita tecnologia concentrada numa só peça. Copiava, escaniava, imprimia, enviava e-mails, e fazia muitas coisas mais. E tudo com altíssima qualidade.

- Esta máquina é tão avançada que só falta falar. Disse um deles ao terminar a instalação. E assim, ela foi deixada no corredor disponível para uso imediato.

De tão imponente que era, com suas dezenas de botões coloridos e luzes piscantes, até gerava certo receio à que ia usá-la. Rapidamente se percebeu que não seria muito fácil operar a tal máquina.

Mas como sempre, aqueles que adoram fuçar novas tecnologias partiram para o ataque. Aperta botão daqui, aperta botão dali e nada. Parecia que operá-la não era realmente uma tarefa fácil. Assim, para evitar vexames, as pessoas já estavam preferindo fazer suas tentativas com corredor vazio.

Lá pelas tantas, Aderbal parte para usá-la. Tenta, tenta e nada.

Olhando desorientado para aquela maravilha cibernética pensa consigo mesmo: - O que é que eu faço agora?

Neste instante, a máquina emite alguns sinais luminosos, faz uns barulhinhos e lança uma folha onde estava escrito:

- Aderbal, aperte o botão verde e depois dê OK.

Quando Aderbal leu o que estava escrito tomou um grande susto e logo pensou: - Isso é armação da turma! Olhou para um lado, nada, olhou para outro e nada. Não havia ninguém.

Novos sons e mais luzes piscaram e mais uma folha aparece.

Nela se lia: - Você vai ficar ai parado, ou vai fazer o que mandei? Aderbal, desconfiadíssimo, fez o que ela lhe havia indicado e em seguida, lá estava ao seu trabalho realizado.

Logo ele pensou:

- Que máquina é essa!

E mais uma folha de papel sai da impressora. Lá estava a resposta à exclamação de Aderbal.

-Eu sou uma maquina especial, posso perceber os seus pensamentos e conversar com você através das minhas folhas impressas. Quer fazer um teste? Pense em algo que eu lhe direi o que foi.

Mesmo sem querer acreditar no que estava vendo, ele pensou nos seus problemas econômicos.

Instantaneamente mais uma folha sai da maquina dizendo:

- Você pensou nos seus problemas econômicos, não foi? E lhe digo como resolvê-los. E passou a descrever a solução do problema, passo a passo. Aderbal não acreditou no que estava lendo. Além de acertar sobre o seu pensamento, lá estava a solução para os problemas que vinham lhe atormentando. A solução era perfeita.

Mais uma vez, uma nova folha é aparece:

- Aderbal, quando quiser falar comigo ou quiser algum conselho de qualquer tipo, é só vir aqui e apertar o botão azul três vezes.

E assim, Aderbal voltou para sua sala meio confuso, porém totalmente deslumbrado com aquela maravilha cibernética.

Chegando lá, ainda sob o efeito do ocorrido, contou em detalhes ao seu colega, o que lhe havia acontecido.

Este logicamente não lhe deu muitos créditos, mas devido a conhecer muito bem Aderbal e saber que ele não era homem e brincadeiras, resolveu discretamente testar as estranhas qualidades daquela máquina.

Não é que deu certo! Ela também identificou o seu pensamento e imprimiu um esquema detalhado de como resolver a sua questão.

Aos poucos, de boca em boca, todos ficaram sabendo das proezas daquela máquina. Uma impressora que dava todo tipo de conselho e resolvia todos os problemas que lhe apresentavam.

Rapidamente formou-se uma grande fila no corredor. Logicamente, todos queriam ser atendidos por ela. Todos queriam ter nas mãos a solução para os seus problemas.

Para um maior conforto e privacidade do consulente, providenciou-se uma cadeirinha que foi colocada ao lado da máquina e um biombo, para evitar o olhar indiscreto dos curiosos. Assim o local ganhou certo “ar” de confessionário.

E assim, a máquina começou a atender um por um, daquela fila que crescia a todo instante.

A essa altura dos acontecimentos, funcionários de outros andares já sabendo da novidade, se juntavam aos demais, aumentando cada vez mais a fila. O grande número de pessoas concentradas naquele corredor acabou por gerar um principio de tumulto.

A segurança foi rapidamente chamada para ordenar a tal fila e dar proteção para a máquina. Finalmente, ela, devido aos seus predicados, mostrava ter um valor inestimável para todos.

E assim, passaram-se horas e horas com a máquina em atendimento. Todos saiam maravilhados com suas respostas e com suas soluções originais e fantásticas para os problemas apresentados.

Há certa altura dos acontecimentos, a máquina passou a dar sinal de falta de papel. Logo alguém gritou: - Esta faltando papel! O papel acabou! Instantaneamente criou-se um corre-corre para solucionar o problema. Rapidamente, resmas e mais resmas de papel apareceram de todos os lados. Agora era só alimentar as gavetas e prosseguir sem demora, com aquela inusitada sessão.

Tenta daqui, tenta dali, e ninguém conseguia abrir as gavetas para colocar o papel, elas pareciam estar emperradas. A situação fez com que a tensão crescesse. Alguém gritou, deixa comigo que eu abro estas gavetas. Mas nada acontecia, até que alguém lembrou e mandou chamar o pessoal da manutenção.

A expectativa a essa altura já era grande e todos aguardavam com ansiedade a chegada do grupo que iria solucionar o problema.

Finalmente eles chegaram! Tentaram por várias horas e nada. De vez em quando alguém gritava:

-Cuidado com ela, não vão quebrá-la.

E o tempo passava e nada. Parecia que a máquina era blindada.

A tensão no corredor crescia cada vez mais. As pessoas que ainda não haviam se consultado foram chegando próximo ao desespero. Afinal de contas, aquela era uma oportunidade impar, uma oportunidade imperdível. Aquilo não podia estar acontecendo logo naquela hora.

No ápice da tensão, alguém já alucinado gritou:

- Agora esta máquina vai abrir, e se não foi por bem, será por mal! E num acesso fulminante de raiva, totalmente descontrolada, parte em direção á máquina com um extintor nas mãos e passa a golpeá-la violentamente. Quando o pessoal se apercebe e consegue conter o agressor, já era tarde demais. Infelizmente um desses golpes atingiu o painel de controle, e no mesmo instante a máquina começou a emitir uns estranhos sinais luminosos, até parar totalmente. Um pequeno cheiro de queimado se fez sentir no ambiente.

O silencio foi geral! O que teria acontecido? A máquina teria sido quebrada?

Fez-se um silencio profundo e começou a se criar uma atmosfera de vingança contra o agressor. Passados alguns segundos, alguém gritou lá do fundo: A culpa é dele! Ele é o culpado! Ele quebrou a nossa máquina!

Rapidamente catalisou-se uma ira coletiva contra o agressor, e em coro a galera começou a gritar histericamente, lincha, lincha, lincha!

Mesmo com todo aquele tumulto, alguém percebe que a máquina voltou a emitir sinais. Se bem que eram tímidos, mas eram sinais de vida. O que estaria acontecendo agora?

Para a surpresa de todos, os seus rolos lentamente começaram a funcionar e uma última e derradeira folha lentamente sai do seu interior. Após este ato ela parou completamente.

A folha é recolhida por um dos presentes que a lê com um semblante profundamente reflexivo. Imediatamente passa a mensagem para o outro colega. A reação deste é semelhante a do primeiro. E assim a derradeira mensagem vai passando de mão em mão e todos tendo a mesma reação. O agressor percebendo todos aqueles olhares fulminantes em sua direção começa a tentar sair de fininho. Mas do meio daquele tumulto ecoam as seguintes palavras:

- É agora!

E todos saem correndo atrás do infeliz gritando, lincha, lincha, lincha.

No corredor só restou mesmo à máquina irremediavelmente quebrada o último papel lançada por ela.

Nele podia-se ler: Lincha ele, lincha!

Claudio Sarnelli

22/09/2013

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Sentimentos.

Apressados, quatro homens entraram em uma sala de velório levando um caixão. Nele se encontrava o corpo de um senhor idoso, que acabara de falecer momentos antes. Uma equipe de funcionários já se encontrava lá arrumando o que faltava, para que se pudesse dar início, o mais rápido possível, ao ritual religioso. Ainda não eram dez horas da manhã.

Logo que se encerraram os preparativos, começaram a chegar as coroas de flores, uma após a outra, e a sala se tornou pequena para tantas flores. Os familiares iam chegando e se posicionando ao lado do morto, num ambiente que já exalava um forte cheiro; mistura de velas e flores.

As feições das pessoas não pareciam transtornadas com o acontecido. Talvez porque já se sabia, e há muito tempo, que o Sr Ruan tinha um câncer sério, e que nos últimos dias a situação havia se agravado.

O próprio Ruan falava dele com tranqüilidade e total consciência de sua gravidade. Tanto assim que já tinha deixado toda a sua documentação em ordem, com explicações escritas para tudo, tentando facilitar ao máximo a sua família, após a sua partida.

Dias antes, Ruan acabara de voltar de sua ultima viagem à praia, junto com sua irmã, idosa e viúva como ele. Esse era um costume que os dois irmãos criaram após Ruthe também enviuvar.

Porem, esta ultima viagem foi diferente das demais. Ruan passou a maior parte do tempo no quarto do hotel. As dores começaram a se intensificar e já não conseguia mais andar direito.

Quando não foi possível mais suportar o sofrimento, pediu para a irmã que antecipasse a volta. Mas, já era tarde. Do aeroporto foi direto para o hospital, sendo que após alguns dias veio a falecer.

Um padre foi chamado às pressas e meio a contra gosto, devido a aquela pressa toda, realizou a cerimônia de praxe. Em seguida, deu-se enterro propriamente dito, e mesmo antes de se completar totalmente o lacre do jazigo, alguns familiares já se retiravam. Ainda não eram doze horas da manhã.

Dentre os que saíram inicialmente, estava Ruthe.

Na saída do cemitério Ruthe fala para a sua filha mais nova:

- Felizmente conseguimos fazer tudo há tempo, agora podemos nos concentrar no aniversário de Nina (sua neta preferida).

A turma foi informada, ainda no cemitério, que mesmo tendo havido o enterro do tio avô Ruan, haveria a festa de aniversário da Nina.

Ruthe a filha e mais duas senhoras partiram para a casa, para aprontar a festa, que seria naquele mesmo dia, no final da tarde.

Como de costume, em dia de festa, um corre core se estabeleceu na casa, mas, exatamente às 17 horas estava tudo pronto para a recepção.

A chegada dos convidados foi um tanto quanto esquisita. Devido aquela situação inusitada, eles não sabiam exatamente o que dizer, e assim evitaram dar os parabéns para os donos da casa.

A situação se tornou realmente bizarra, quando foram cantar os parabéns para a Nina. Aí o constrangimento foi geral, até que um deles, mais arrojado, puxou a musica com veemência, e assim todos cantaram.

A partir daquele momento a festa transcorreu como todas as outras. Com muitas brincadeira e crianças correndo de lá para cá. Em fim, o mal-estar de se fazer aquela festa no mesmo dia da morte do tio Ruan, tinha acabado. E assim a reunião foi até o fim.

Quando todos os convidados foram embora, Ruthe vira para a filha e diz aliviada:

- Ainda bem que a morte do Ruan não estragou a festa da Nina.

Imagina como ela ia ficar se não houvesse a festinha.

Alguns minutos depois ela procura a filha, e desta vez, com ar de consternação, diz:

- Sabe filha, vou lhe confessar uma coisa.

Ruan já está me fazendo uma falta danada!

Não sei se vou agüentar a viver sem ele!

Você me conhece, sou uma pessoa muito sentimental.

Claudio Sarnelli

09/04/2013

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O estertor.

Foi um verdadeiro drama.

Dagoberto havia sido encontrado morto de manhã, pela moça do café, debruçado sobre o teclado de seu computador.

O médico legista afirmou que pelos detalhes, ele havia sofrido um infarto, e que o fato deveria ter ocorrido há quase dois dias.

O trauma foi geral. Ninguém podia entender como uma coisa assim havia acontecido. Dagoberto estava morto á quase dois dias e ninguém havia percebido, mesmo com várias pessoas trabalhando naquela sala. Como isso poderia ter ocorrido?

Um sentimento de culpa assolou a todos.

Mas a verdade é que, já há muito tempo, por se recusar a participar das artimanhas engendradas pelos colegas da sala, Dagoberto havia sido esquecido pelo grupo. Mas mesmo assim, seguia fazendo o seu trabalho normalmente, sem dar muita importância à situação.

Aquela morte era uma situação inusitada, onde todos da sala, de uma forma ou de outra, ficaram traumatizados com o acontecido. Como “bons colegas”, foram todos ao velório, para a última despedida e para aliviar um pouco o peso que havia se instalado em suas consciências.

Discretamente, ao redor do caixão, começaram a tecer uma serie de elogios ao morto. Mas à proporção que o velório ia enchendo e pessoas importantes da empresa se faziam presentes, os comentários foram se acentuando, e enaltecendo cada vez mais as virtudes do ex-colega.

A um determinado momento, alguns mais observadores começaram a perceber que o corpo do Dagoberto parecia estar um pouco mais contraído do que quando eles lá chegaram. Em tom de espanto, comentários a esse respeito foram sussurrados discretamente. Parecia que alguma coisa muito estranha estava acontecendo. A cada minuto que passava, notava-se que o corpo do finado se contrair cada vez mais. O espanto e a curiosidade tomaram conta dos presentes.

Observando tudo, do alto da sala, a Morte, com suas grandes asas negras e sua foice reluzente, esperava calmamente o término do velório para levar definitivamente a alma de Dagoberto. Ao perceber a profunda agonia que aquele espírito estava passando, ela diz para o falecido de forma incisiva: - Dagoberto, não adianta mais. Entenda que você morreu e que não pode mais voltar. Este é um caminho sem volta.

Dagoberto olha para ela e diz repleto de indignação:

- Senhora, eu sei bem disso, mas é que mesmo morto eu não agüento a presença destes hipócritas fazendo discurso sobre minhas virtudes, inclusive sobre algumas que nem as tenho.

Quando estava vivo nem um bom dia me era dado, agora ficam aí me bajulando. Fazem agora o que sempre fizeram, tentam se passar por pessoas de alto valor humanitário, mas na verdade são um bando de abutres. Se não fosse a Zefa, acho que ainda estaria ainda lá, debruçado sobre a mesa e apodrecendo cada vez mais.

Só era lembrado quando a coisa apertava e lá viam eles, amáveis e respeitosos para que pudesse resolver a questão. Depois só havia desprezo e esquecimento.

Entre eles a relação era sempre de puro elogio, onde a “irmandade” se tratava sempre pelo diminutivo. - Saiba senhora, eu nunca me dobrei a todo aquele embuste. Agora eles têm o desplante de virem aqui para me elogiar. Mais um ato de fingimento, de simulação e de falsidade.

Após ouvir tudo atentamente, e sendo a morte apenas um anjo, que não é nem bom nem mau, e que apenas executa o seu trabalho, achou toda aquela situação merecia uma repreenda. Sendo assim concedeu a Dagoberto a possibilidade de se expressar pela ultima vez para aquele grupo.

Repentinamente uma respiração rouca e crepitante vindo do defunto rompe o silencio momentâneo que fazia na capela.

Era o morto que parecia estar voltando à vida. Espanto e desespero tomam conta dos presentes.

Em seguida escuta-se uma voz rouca e profunda. Era o Dagoberto que se pronunciava pela ultima vez:

- Bando de calhordas; bando de hipócritas! Deixe-me em paz!

A debandada foi geral.

Claudio Sarnelli 20/05/2013

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

No controle.

Totalmente esbaforido, Altino rompeu a porta da nossa sala e meio atordoado disparou:

- Vocês já ouviram o bordão desta rádio nova?

Sem entender o que estava acontecendo, nos olhamos, e quase que em uníssono respondemos: - Não!

Continuando, ele acrescentou:

- Não é possível; a gente tem agora que ficar ouvindo isso o tempo todo.

Alguém tomou a iniciativa perguntou:

- E o que diz esse tal bordão de tão impressionante assim, Altino?

- Os caras agora ficam dizendo o tempo todo,

”Em vinte minutos tudo pode mudar”,

”Em vinte minutos tudo pode mudar”,

-Pode uma coisa dessa? Esses caras são uns terroristas!

Agora a gente tem que ficar imaginando, que em vinte minutos pode haver uma enchente na cidade e levar meu carro, um terremoto, eu posso ser assaltado e seqüestrado. Em vinte minutos pode até iniciar uma guerra mundial! Isso é terrorismo psicológico.

E concluindo proclamou: - Eu não ouço mais esta rádio. Isso é um absurdo!

Aquela frase tinha mexido realmente com a insegurança de Altino, um cidadão pacato, mas controlador por excelência. O bordão daquela rádio o tinha tirado visivelmente da sua zona de conforto, de onde “tudo dominava”. Tinha lançado por terra, toda falsa idéia de controle que tinha, sobre tudo e todos.

Nos dias seguintes Altino foi trabalhar, mas o seu comportamento estava visivelmente mudado. Passava pelos corredores em intensa sudorese e volta e meia confessava, aos mais próximos, que depois daquele dia, passou a sentir ataques de ansiedade, de medo, e até algumas vertigens.

Quando não agüentou mais, foi parar na terapia. Após várias sessões, concluíra meio em pânico, e com muito pesar, que o mundo não era controlável e sim totalmente aleatório. E com essa observação cruel, percebeu que o tal bordão era uma realidade. Descobriu ainda, que tinha passado a vida fugindo desta realidade e criando mecanismos manipuladores.

Passado algum tempo desde o dia daquele acontecimento, eis que Altino chega ao trabalho tranqüilo e sorridente, como nunca antes visto.

Naqueles dias, pela sua serenidade, ele era o próprio senhor da situação.

A turma, que já andava alerta, ficou intrigada com aquela mudança tão repentina.

-Sabe como são as turmas dos escritórios!

Logo, uma força tarefa foi montada para descobrir o que estava acontecendo. Investiga daqui, investiga dali, e finalmente descobre-se o motivo de tanta tranqüilidade.

Altino tinha terceirizado suas preocupações.

Em seu carro, ele havia colado um enorme adesivo plástico que dizia:

“Deus está no controle, ele cuida de mim. Deus é fiel”.

domingo, 8 de setembro de 2013

A crítica, a ética e o "politicamente correto".

Como se pode exercer o direito da crítica sem ultrapassar os limites da ética e não se chocar com a barreira do "politicamente correto"?
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Imagine você fazendo parte da equipe do navio transatlântico Costa Concordia, com cerca de 4 mil passageiros, sob as ordens do Comandante Francesco Schettino. Por negligência, a embarcação encalhou e posteriormente naufragou na costa da Itália. No incidente, 30 pessoas morreram.
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Sabendo da fama de irresponsável de seu comandante, e que isso poderia colocar em risco a vida de milhares de passageiros e da própria tripulação, o que você faria?
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Ficaria calado - porque não seria ético e é politicamente incorreto falar dos defeitos de seus colegas de trabalho, principalmente dos seus superiores - ou comunicaria à companhia, tentando alertar sobre uma possível catástrofe?
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A função da ética é dar equilíbrio e bom funcionamento às relações sociais, possibilitando o bem comum. Ela está relacionada com o sentimento de justiça social.
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Para que isso ocorra, a relação ética deve ter mão e contra-mão. No momento que alguém age e por algum motivo prejudica outrem, abre-se automaticamente o canal para a crítica. Logicamente, uma crítica construtiva, que tenha a intenção de restabelecer a normalidade das relações.
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Atualmente, algumas pessoas já começam a questionar, o que julgam ser exagero, a diretriz do "politicamente correto" para o bem-estar comum.
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Segundo o filósofo pernambucano Luiz Felipe Pondé, essa diretriz é uma forma de censura fascista que grupos estabelecem para que o seu silêncio beneficie a eles ou a pessoa de seu interesse.
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Portanto, quando alguém ou alguma instituição social é prejudicada, temos o direito legítimo à critica, sem preocupação com a "ética" e o "politicamente correto".
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Todos temos o direito, na intenção de se reestabelecer a justiça, de dizer:
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- "Vada a bordo, Schettino!" *
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* Fala do comandante De Falco, da Capitania dos Portos, ordenando à Schettino que ele voltasse para bordo. Ele foi um dos primeiros a abandonar o navio.
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Claudio Sarnelli
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15/10/2012

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A grande batalha.

Aos poucos ele foi recobrando a consciência. Sons longínquos começaram a se fazer ouvir juntamente com os primeiros lampejos de algumas imagens distorcidas.
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Começou a sentir um frio intenso e a perceber quando lhe eram colocados alguns cobertores para lhe aquecer melhor. Em certos momentos ouvia gritos de horror misturado a um forte cheiro de eter.
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Passado algum tempo notou que algo havia mudado no ambiente, o local estava mais quente e já podia distinguir e compreender as palavras que estavam sendo ditas ao seu redor. O que teria acontecido? Onde estaria?
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Repentinamente, percebeu que ao seu lado havia uma moça que lhe perguntava qual era o seu nome e como ele estava se sentindo.
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Ele ainda entorpecido respondeu com dificuldade:.
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- Souza, meu nome é Souza; Praça Souza.
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Atordoado, e sem ainda distinguir bem as feições daquela pessoa, pergunta: - Quem é você? Onde estou?
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Ela delicadamente responde:
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- Meu nome é Raquel. Sou uma enfermeira brasileira e estou aqui para lhe ajudar. Você está em um hospital para se tratar.
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Souza , cheio de esperanças, pergunta mais uma vez:
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- Estamos no Brasil?
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Raquel lhe diz que eles ainda estão na Italia e que estão em um hospital de campanha. Diz ainda, que ele iria precisar passar mais algum tempo alí, antes de voltar para casa.
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Aos poucos o Praça Souza lembrou-se de tudo o que lhe havia acontecido.
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Sua companhia tinha sido designada para para a tomada de Monte Castelo, que se encontrava sob o domínio alemão.
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Mesmo sem nenhum apoio aéreo ou terrestre, devido as péssimas condições do tempo, tinha restado apenas para aquele grupo de Praças barasileiros avançar colina acima armados exclusivamente com suas bravuras e muita fé. Inicialmente o ataque parecia estar sendo bem sucedido até o momento em que o inimigo, com extrema violência, rechassou o grupo da FEB, através de lançamentos de uma grande quantidade de morteiros.
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Neste contra-ataque o Praça Souza foi atingido gravemente na perna, ficando desacordado no campo de batalha por muitas horas até ser resgatado pelos seus companheiros.
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Por ter ficado assim por um longo tempo sem atendimento médico, uma infecção havia se instalado comprometendo gravemente a sua vida.
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Recolhido para uma área mais segura, o Praça delirava continuamente devido á febre alta, e em certos momentos era obrigado a receber morfina para aliviar as terríveis dores que faziam seu corpo se contorcer freneticamente. Depois de um longo tempo de espera e já com sintomas de uma grave infecção, finalmente foi transferido para o hospital de campanha.
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Lá, quando se sentia melhor, passava a conversar com a enfermeira Raquel e a lhe contar sobre a sua vida, falar de sua familia , como chegou até alí e o que pretendia fazer quando a guerra acabasse e ele voltasse para casa.
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Raquel, consciente do grave quadro clínico que ele apresentava, apenas ficava ouvindo e eventualmente secando a sua fronte com um maço de gazes quando a febre se tornava muito alta.
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A proporção que o efeito da morfina ia terminando e as dores iam voltando, Souza mudava de assunto e passava a falar unicamente sobre a morte. Falava dela com a propriedade de quem já a conhecia.
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- Sabe Raquel, dizia ele de forma tranqüila, porém com um semblante transtornado pelas dores, eu soube que em Pistoia estão enterrando soldados brasileiros por lá. Mas nada disso me assusta mais. Durante estes dias que estive aqui , e devido a esta condição vulnerável que me encontro, aprendi várias coisas.
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- As pessoas devem morrer da forma que viveram, e esta guerra não faz parte da minha vida. Sempre vivi em paz. Quanto mais tento fugir deste fato, mais extraordinário ele se torna.
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A essa altura, já com uma respiração profunda e pesada, que por vezes ocupava todo o salão, Souza seguia falando:
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- Só agora entendo. Devíamos começar a nossa vida pela morte. Assim, tudo seria diferente, haveria outro sentido para as coisas. Se fosse assim, dizia intercalando uma respiração penosa e profunda, esta guerra miserável certamente não estaria acontecendo.
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Raquel observava aquele homem que lutava a sua última batalha e que se alternava entre uma paz serena e um medo profundo. Certamente, buscava a melhor estratégia para encontrar o caminho correto para uma boa morte. Espantava-se com a sobriedade daquele soldado moribundo e ouvia aquelas palavras com profunda atenção.
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Souza, a esta altura, proferia palavras agora quase inaudíveis. Passou a falar da escuridão da trincheira em que ele se encontrava e do túnel negro em que ela havia se transformado.
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Em um último e derradeiro esforço, já envolto no odor rançoso da morte, chama por Raquel e diz de forma quase incompreensível:
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- Raquel, Raquel, você que foi o meu anjo da guarda durante todo este tempo, escute bem o que vou lhe dizer. Preciso lhe contar. Eu já estou aqui, e acabo de descobri como enganar a morte. Tudo é muito simples. Para você enganá-la precisa saber apenas de uma pequena coisa. Você precisa simplesmente................................................
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Claudio Sarnelli
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01/09/2013

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O funeral de Edmea.

Em 1983, o cineasta italiano Federico Fellini lançou o filme “E La Nave Va”. Nele, um grupo de amigos de Edmea Tetua, que acreditavam ser ela a maior cantora lírica de todos os tempos, parte da Itália a bordo do luxuoso navio Glória N, rumo à ilha de Érima .
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O objetivo da viagem? Assistir ao funeral da cantora que, segundo vontade expressa em testamento, determinou a dispersão de suas cinzas naquela que fora sua ilha natal..
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Chegando à ilha, todos se deslocaram até o local da cerimônia. Ao chegarem, encontraram um cidadão que já os esperava e de longe observava todo o movimento. Ele se trajava todo de branco, usava chapéu e capa branca. Pela posição que o sol se encontrava, não era possível reconhecer sua feição. Mas, pela qualidade de suas roupas, deveria se tratar de alguém de posse..
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Após todos chegarem, teve início a cerimônia. Neste exato momento, o homem enigmático se aproximou. A urna foi aberta e os amigos, um por um, foram tirando um pouco das cinzas e jogando ao ar sobre aquele solo rochoso da ilha de Érima..
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Próximo ao término da cerimônia, um dos amigos de Edmea aproximou-se do estranho personagem e perguntou, após cumprimentá-lo:.
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– O senhor também foi amigo de Edmea?.
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O homem de branco respondeu:.
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– Não sei se posso dizer que fomos amigos, mas posso afirmar que tivemos um extenso relacionamento..
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– Então, o senhor a conhecia muito bem – deduziu, com olhar inquiridor..
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– Sim, mas preferia não tê-la conhecida..
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– Como assim, senhor?! Ela não era tua amiga?! – admirou-se..
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– Não. Edmea não era amiga de ninguém. Acho que nem de si própria..
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– Como assim?! – indagou o amigo de Edmea, já com a curiosidade aguçada..
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– Essa pessoa que agora é pó sempre fingiu ser quem não era – respondeu o estranho..
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–Mas como?! Os amigos de Miss Ed são totalmente crentes da sua personalidade – rebate o amigo..
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– Desculpe senhor, mas a preocupação que demonstrava com o próximo era totalmente falsa. No fundo, a sua única intenção era manipular as pessoas para que elas a servissem. O poder e a glória eram seus únicos objetivos. Com sua voz maravilhosa, hipnotizava as pessoas e as tornava seu escravo. Para chegar ao estrelato, manipulou seus amigos e difamou suas concorrentes. Quando se tornou uma estrela, perseguiu e humilhou os oponentes. Em especial um deles, que tentou destruir. Muitos sucumbiram à sua total falta de caráter e à sua personalidade nefasta. Inclusive eu! – acrescentou..
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– Mas, senhor, se pensas assim sobre Miss Ed e também fostes tão prejudicado por ela como dizes, por que viestes ao funeral?!.
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O homem misterioso, pegando o resto das cinzas que ainda sobrava na urna, joga-as ao vento e, olhando para aquele solo rochoso e totalmente estéril, onde nada poderia nascer, responde:.
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– É apenas para ter certeza absoluta de que ela se foi..
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(Adaptação livre da obra-prima de Federico Fellini, E La Nave Va, 1983).
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Claudio Sarnelli.
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31/10/2012